A Transit do meu Pai
É difícil. É já a enésima vez que tento começar este texto em forma de pensamento vestido de palavras, e não está fácil. Quero fugir ao “Era uma vez a Transit do meu Pai”, e pensei que podia começar por “como vos posso pedir a atenção, se ao olhar para uma fotografia destas a grande maioria de vós desatará a escutar o som das memórias de tantas Transits que moraram desse lado?”. De alguma forma tenho que começar, antes que o editor feche a hora de publicação do Jornal, e assim me prostro, assumindo a derrota.
“Era uma vez a Transit do meu Pai”. Branca, com a carroçaria de nove lugares que me permitia vir da última à primeira fila de bancos mais depressa do que ela atingia os 100 à hora (que alcançou, bem vi eu com os meus olhos arregalados, certo dia numa das secções da EN16 ali ao chegar a Vale Maior, perto de Albergaria-a-Velha, no sentido em que a estrada tem uma recta longa… com algum declive). A carroçaria ampla no interior que, com os bancos arrumados (qual rebatidos, isso é de outros tempos), permitia transportar garrafões até ao tejadilho (para lá vazios, para cá cheios, numa das técnicas mais sustentáveis e biológicas de rebaixamento de um veículo: de facto, não era preciso mexer na suspensão – bastava, para isso, encher bem até à última gota os garrafões com o néctar divino que o meu Pai vendia ali n’O Sentinela).
É verdade, o letreiro por cima da porta. A rua, em Sever do Vouga, mantém o nome: é a Rua do Casal, mas O Sentinela é agora um albergue de alojamento local onde as pessoas pousam o espírito. Ali naquela altura, e por entre o néctar e as fêveras, a Alma deambulava em viagens para outros mundos, com os pés mais ou menos bem assentes no mundo de cá. Lembro-me das taças de vinho vendidas a 40 escudos (vinte cêntimos. Vinte). Das pastilhas Gorila gigantes que serviam de base aos concursos de ‘quem aguenta mascar mais?’. De ficar naquele banco ali ao lado da porta com o meu Irmão a ‘jogar aos carros’ – cada um escolhia uma marca ou uma cor, e o primeiro a chegar aos dez, ou aos vinte, ou aos cinquenta (dependesse da velocidade do tempo), ganhava. Naquela altura, a escolha de Opel ou Renault garantia duelos épicos. Nas cores, o cinza e o branco também se digladiavam bem. Não obstante, por vezes soltávamos a coragem e escolhíamos Ford ou Toyota, preto ou azul ou até vermelho e creme (fosse feito este combate ao fim da tarde, e podíamos apanhar as Hilux das pessoas a regressar dos seus trabalhos).
Porquê O Sentinela? A foto não permite ver, mas logo à esquerda tínhamos o início das escadas que davam para o antigo posto da GNR. Ora, sem qualquer agência de marketing, o meu Pai achou por bem que seria um nome adequado. Faz sentido, pois faz?
Regressando à Transit, era com ela que o mundo girava. O rádio não funcionava, mas agora que penso nisso, nunca fez falta. À semana o trabalho, ao fim-de-semana o pegar na criança mais nova (este que vos escreve), envolvê-la num cobertor laranja já desgastado com o tempo e levá-la no banco da frente para a casa dos Avós, para acabar de dormir o sono da manhã ou ver a Rua Sésamo à socapa. Ao Domingo, ir em passeio “ver a água”, descendo ao Rio Vouga, ou passear pelo Braçal, com o Avô Lino a explicar o mapa dos carris que davam acesso às minas. Certo dia, a caminho das bombas de gasolina (num ritual que eu adorava, pelo aroma do combustível que se assomava ao longe), ia eu entretido no banco de trás a fazer caretas aos outros condutores. Qual castigo dos deuses, o banco soltou-se e o meu queixo projectou-se a grande velocidade para a porta de trás. Foi merecido, e o perfume das bombas de gasolina ajudou à cura. Nalgumas destas ocasiões, a Transit cansava-se. Era necessário parar e pôr água no radiador. Depois, era preciso continuar. E ela continuava.
O posto da GNR foi entretanto convertido em biblioteca, e lá passava eu muitas tardes a ler As Aventuras de Tintin e, mais tarde, a imprimir fotografias de automóveis estrangeiros que desconhecia encontradas na maravilhosa e recente internet ligada no único computador da sala, que depois forrava a papel autocolante para distribuir pelos cadernos da escola e pelos móveis lá de casa (o que, em visitas aos progenitores, pode ainda causar algum susto se, por acaso, me deparar com um autocolante de um Ford Escort americano de inícios dos anos 90. Pois, não é bem a mesma coisa que os nossos, que já em si nem sempre andam de mão dada com a beleza, não).
Mais tarde, o meu Irmão aprendia a conduzir e o mundo da Transit girava um pouco mais depressa. Era nela que embarcávamos para ir ver o rali passar precisamente na serra do Braçal, onde a fita de segurança para controlo do público podia acabar por ser aquele tronco da árvore a que me agarrei para ver passar o McRae.
EL-07-24. A primeira matrícula que decorei. Não sei se hoje passaria na inspeção, mas aquelas chapas com relevo eram motivo de orgulho. Eram o sinal visível que a Transit do meu Pai tinha algo mais. Tanto mais, que na foto que ali vemos em cima, a minha Mãe se distrai e, em vez de olhar para a câmara, perscruta algo nela e sorri.
Não quebrarei nenhum sigilo de Estado ao confessar agora que a Transit já partiu para outros mundos. Depois das mãos do meu Pai, foi vendida em 1998 e os donos seguintes deixaram-na sucumbir. Sabemos que uma Transit só morre quando deixa de ter atenção, e essa é talvez a maior das mágoas que guardamos dela. Hoje, no entanto, continuam os tampões metálicos guardados no sótão, para o dia em que os voltaremos a pôr: “quando a pintarmos, aplicamos os tampões”.
Já não iremos a tempo de a pintar, é certo, mas dos tampões a brilhar o meu Pai continuará a cuidar.
Fonte Jornal dos Clássicos
Texto Pedro Martins Costa